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Como viveram e ainda vivem os atingidos pela hanseníase, uma doença marcada pelo preconceito, no antigo leprosário do Pirapitingüi.
por Mariana Zapella, Lidiane Ferreira, Ligia Gauri

    Corria o ano de 1957. O jipe preto da polícia parou à porta da casinha de madeira em que vivia João Santos e sua família, na cidade de Marília, interior de São Paulo. O dono da casa, chamado às pressas, apareceu. Foi laçado e jogado no veículo, como um animal. Sua mulher foi então obrigada a entregar os documentos do marido dentro de um saco plástico, que os policiais recolheram com nojo. As sete crianças foram retiradas de lá somente com a roupa do corpo e as certidões de nascimento. Em seguida, com gasolina do próprio jipe, os policiais atearam fogo à casa, que queimou rápido. “Foi uma das últimas vezes em que vi meu pai”, relembra Claudete dos Santos Machado, que à época dos fatos tinha apenas seis anos.
    Assim eram tratados aqueles sobre quem pairava a suspeita da lepra, como João. A internação em colônias era compulsória; os “acusados” não tinham ne-nhuma escolha ou chance de defesa. Eram culpados mesmo antes de confirmado o diagnóstico e caçados como criminosos. Eles só tinham a si mesmos: na maioria das vezes, nem mesmo a família os queria por perto.
        O isolamento compulsório para os atingidos pela lepra foi determinado no Brasil pela lei 2.169, de 27 de dezembro de 1926. Havia sido recomendado, alguns anos antes, pela Conferência Internacional da Lepra. Diversos hospitais, sanatórios e asilos-colônia foram criados para atender à lei e acolher os doentes. O Brasil chegou a ter 35 instituições desse tipo, chamadas então de leprosários, mas muitas delas foram desativadas com o fim da internação compulsória, na década de 60. Até hoje, no entanto, algumas estão em funcionamento, abrigando remanescentes daquele período. São pessoas que, por falta de condições financeiras para morar fora das colônias ou por medo do estigma de preconceito com que a lepra as marcou, preferiram continuar vivendo lá dentro.
            No Hospital Doutor Francisco Ribeiro Arantes, conhecido até hoje pelo antigo nome de Pirapitingüi, muitas histórias como a de Claudete estão perdidas no tempo e na memória dos 329 pacientes e ex-pacientes que, como ela, ainda vivem ali. É um número baixo, se comparado à época em que o hospital chegou a ter cerca de cinco mil internos.
Especialistas julgavam que retirar os doentes do convívio social era a medida profilática mais eficaz para deter o avanço do mal, impedindo novas contaminações. Somente em 1962, através de um decreto do então primeiro-ministro Tancredo Neves, é que a norma foi revogada em todo o país, exceto no estado de São Paulo, onde a segregação continuou sendo obrigatória até 1967 por se entender que um decreto não tinha força para derrubar uma lei.
      A ignorância sobre o assunto era geral. O preconceito atingia todas as camadas sociais. Nem mesmo os médicos sabiam como lidar com aquela doença que há séculos apavorava o imaginário da humanidade e provocava repúdio pelas marcas que deixava no corpo. Muitos acreditavam que se tratava de castigo divino.
      Fundado em 1932, o Pirapitingüi fica na cidade de Itu (a cem quilômetros de São Paulo), na beira da rodovia Waldomiro Correa Camargo, que liga Itu a Sorocaba. Afastado do centro, ocupa, hoje, uma área de oitenta alqueires; quando foi inaugurado, o terreno tinha duzentos alqueires.
      Em seus “áureos” tempos, entre as décadas de 40 e 60, os internos contavam com escola, cinema, posto de gasolina, marcenaria, mercadinho, campo de futebol, salão de baile; enfim, tudo o que uma cidade precisaria para funcionar. Até  delegacia e prisão existiam dentro da colônia, que tinha policiamento próprio. Também havia igrejas de diversas religiões, que estão lá até hoje. Toda esta estrutura era necessária porque os doentes, marginalizados, não tinham permissão para sair do hospital em nenhuma hipótese. Seu convívio social se restringia às relações com os demais internos e com o escasso número de funcionários que trabalhavam ali. Por medo de contrair a doença, poucos aceitavam exercer as variadas funções daquela “minicidade”. Os pacientes, então, assumiram o encargo. Muitos, até hoje, são servidores públicos (os chamados laborterapistas) ou se aposentaram pelo Estado. Claudete é uma dessas pessoas. Aos 57 anos, dá expedinte no setor da manutenção. No Pirapitingüi, conheceu seu marido Benedito Machado, 78 anos, interno do lugar desde 1951.
      Hoje, parte dos prédios está abandonada, em ruínas. A cadeia, desativada em meados da década de 80, é um lugar escuro, com grades enferrujadas e paredes queimadas. O assoalho de madeira range a cada passo. Por fora, galhos retorcidos, mato alto e muitas camadas de folhas secas forram o chão. Enormes e assustadoras árvores, com raízes que brotam do solo, dificultam a passagem. Tudo remete a um cenário de filme de terror.
A área é toda cercada, com ruas asfaltadas e iluminadas. Além da enfermaria, em que ficam os pacientes acamados, existem 350 casas que costumavam abrigar os doentes que não necessitavam de internação. Hoje, 233 ainda estão ocupadas, mas não apenas com os atingidos pela doença. A partir de 1990, quando um casal conseguiu permissão para levar o filho para dentro, muitos familiares mudaram-se para lá, também em busca das vantagens encontradas no hospital. Não se paga imposto, aluguel ou contas de água ou luz; a alimentação pode ser feita no refeitório, sem qualquer custo; há atendimento médico de emergência e ambulâncias para encaminhar os casos mais graves a um hospital em Itu. Outro atrativo é a pensão vitalícia, no valor de R$ 750, que, em 2007, o governo Lula concedeu àqueles que foram internados compulsoriamente. A assistente social Maria Aparecida, diretora da gerência social, ressalta que “a realidade do ‘Pira’ não foge à realidade nacional: quem mantém a casa é o idoso”.
       Como o tratamento da doença é feito ambulatorialmente, somente doentes mais graves, que necessitem de cuidados de enfermagem e fisioterapia, são internados. Hoje, só se admite que o paciente vá morar dentro do hospital se ele não tiver condições de sustento próprio ou família que o ajude. Os demais recebem o tratamento, que consiste em doses fracionadas e mensais de medicamentos (a chamada poliquimioterapia – PQT), em postos de saúde.
       Atualmente, os moradores têm liberdade para entrar e sair, diferentemente de quando o contato com o mundo exterior ocorria apenas através do parlatório: um galpão em que ficavam os doentes e os visitantes, separados por muros e vidros, que os impediam de ter qualquer espécie de contato físico. A separação era completa. Foi em um desses parlatórios que Claudete viu o pai pela última vez, na colônia Aimorés, em Bauru, para onde ele fora levado em 1957. Ela ainda não sabia que, anos mais tarde, seria interna do Pirapitingüi e estaria do outro lado do vidro.
       O medo da transmissão da doença era tanto que as crianças nascidas de mães infectadas eram imediatamente transferidas para preventórios, instituições que existiam especialmente para abrigá-las, entre as quais a pioneira e mais conhecida era a Associação Santa Therezinha do Menino Jesus, na cidade paulista de Carapicuíba. Bebês eram levados logo após o nascimento e as mães não podiam sequer amamentá-los. As crianças permaneciam na instituição até que chegassem à  maioridade, ou saíam antes se os pais porventura tivessem alta. Conceição, que preferiu não se identificar completamente, relata que foi separada de seus cinco filhos: três foram levados para Santa Therezinha e outros dois foram para o preventório de Jacareí. Ela conta que os via uma vez a cada seis meses, por poucos minutos, mas eles mal a reconheciam. A família só se reuniu anos mais tarde, quando ela teve alta. Conceição foi internada aos catorze anos, em 1958, na colônia de Cocais, e transferida para o Pirapitingüi em 1970. Curada, pôde sair da colônia, mas acabou voltando para a proteção do hospital, fugindo do preconceito existente fora dele. Está lá até hoje.
       O bacilo Mycobacterium leprae, agente causador da lepra, foi descoberto apenas em 1874 pelo médico norueguês Gerhard Hansen, muito embora até a Bíblia tenha registros da doença, atribuída aos “impuros” (ainda que o termo lepra designasse genericamente todas as doenças que apresentassem feridas na pele). Em Levítico 13 e 14, descreve-se como deveriam ser tratados os doentes: “o leproso atacado de lepra andará com as vestes rasgadas, os cabelos soltos e a barba coberta, gritando: ‘Impuro! Impuro!’ Durante todo o tempo que estiver contaminado de lepra, será impuro. Habitará a sós e terá sua moradia fora do acampamento”.
       Durante muito tempo, era desta forma que se lidava com os doentes, que não eram tratados. O isolamento era tido como a única solução para evitar a disseminação daquele mal. As coisas só começaram a mudar vinte séculos depois, quando se descobriu a cura para a enfermidade com o uso do tratamento poliquimioterápico, na década de 80. A partir de então, a doença passou a ser chamada de hanseníase, numa referência ao Dr. Hansen, e o termo lepra, de forte conotação negativa, deixou de ser utilizado. Apesar disto, o preconceito ainda existe, embora em menor intensidade. “Por isso que o Lula agora está dando uma pensão para nós. Não há dinheiro que pague o que nós passou [sic]”, diz Benedicta Tavares de Oliveira, de 94 anos, internada em 1941 e que, antes de ir para o “Pira”, esteve na colônia de Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes.
       A hanseníase provoca seqüelas tanto físicas quanto psicológicas. A segregação e a discriminação deixaram marcas profundas, e alguns internos, ainda hoje, sentem-se mais protegidos dentro do hospital. O preconceito fez com que muitos deles tivessem medo de encarar a sociedade, depois de passar tanto tempo confinados.
       A vida no Pirapitingüi aparenta acontecer de outra forma. Tempo e espaço são relativos e parecem não ter lá dentro a mesma importância que têm no mundo exterior. O fato de as construções serem todas antigas aumenta a sensação de que se está em um lugar parado na história. “A maioria dos moradores não tem uma noção real do tempo. Alguns, pela seqüela da doença, outros, porque praticamente desde que nasceram estão aqui dentro”, diz o diretor Sidnei Abdalla, que conclui: “nada aqui é feito rapidamente”. A assistente social Maria Aparecida completa: “vive-se o presente, mas muito voltado para o passado. Nas conversas, a tônica é sempre o que passou”. Ela conta que os internos são saudosistas e sentem falta até mesmo da rigidez e do controle a que eram submetidos.
       Na casa de Carmem Rondani Iseppe, 82 anos, existem cinco relógios; nenhum deles mostra o horário certo. Isto não parece incomodá-la. A passagem das horas não importa por ali. Há muitos anos, ela não tem obrigações a cumprir e passa suas tardes sentada na varanda, junto de seu companheiro José e rodeada de suas orquídeas. Esta atmosfera de tranqüilidade e monotonia parece se estender a muitos funcionários, moradores e visitantes. Entrar no “Pira” é como entrar em um mundo diferente.
       Dona Carmem descobriu que tinha hanseníase há 64 anos e está no Pirapitingüi há cerca de quarenta. As datas exatas lhe fogem da memória, mas a lembrança dos acontecimentos ainda está bastante viva. Seus pais foram diagnosticados com a enfermidade quando ela tinha apenas treze anos e internados no asilo-colônia de Cocais, na cidade paulista de Casa Branca.
       Aos dezessete, ela casou-se e teve um filho; logo depois, começaram a surgir manchas em sua pele, denunciando o início da doença. Embora os exames dessem resultados negativos, ela acabou sendo internada junto com os pais, aos dezoito anos. O marido, assustado com a possibilidade de ser infectado, nunca mais quis vê-la, levando consigo o filho ainda pequeno do casal.
       No dia seguinte à sua chegada a Cocais, Dona Carmem começou a trabalhar no hospital. Naquela colônia, passou aproximadamente vinte anos. Mais tarde, transferiu-se para o Pirapitingüi. Como muitos outros, ela chegou a tentar a vida fora dali, indo morar com a irmã. Mas o preconceito que enfrentou dentro do seio familiar fez com que ela mudasse de idéia e retornasse ao hospital.
      Hoje, aposentada como funcionária pública do estado, ela mora em uma das casas mais bem-cuidadas da rua, com José. Sobre todo o tempo em que permaneceu internada, dona Carmem diz, simplesmente: “eu vi muita, muita coisa triste, que não sei nem contar”.
      Com 547 funcionários, sendo quarenta médicos, o “Pira” é gerido pelo estado de São Paulo com verbas do SUS. Segundo dados fornecidos pela diretoria, uma média de 110 atendimentos é realizada por mês atualmente, mas apenas dois casos novos de hanseníase foram registrados neste ano.
“Hoje, o hospital é um lar”, diz Silvio Nunes dos Santos, 75 anos, diagnosticado em 1953 e internado no mesmo ano. “Antigamente, eu via muita gente chorando porque queria ir ver o pai, a mãe, o filho e não podia ir pois o exame não dava [negativo]. Agora, entra gente todo dia, você não sabe quem é paciente, quem é “de saúde” [forma como os internos referem-se àqueles que não foram infectados pela hanseníase].” A abertura, no entanto, teve efeitos negativos. A entrada de novos moradores trouxe problemas como tráfico de drogas e alcoolismo, comuns hoje em dia no lugar.
     Sidnei Abdalla, administrador, é diretor desde maio deste ano e afirma que, hoje, há no hospital mais funcionários do que pacientes. A tendência, segundo ele, é de que o local seja transformado em um hospital geral. “Um centro de tratamento para crianças com deficiências mentais já está sendo construído, e os funcionários e a estrutura atual serão aproveitados.”
Os internos, entretanto, sentem-se “invadidos” pelas novidades. Maria Aparecida conta que quando “o mundo deles foi aberto, ficou difícil lidar com essa nova realidade”. Além disto, eles têm medo do fim do hospital e já chegaram mesmo a sugerir que “seus irmãos de lepra” fossem levados para lá, numa tentativa de proteger um patrimônio que eles têm como deles, sem se dar conta de que a idéia remete exatamente à internação compulsória de que foram vítimas.
O Pirapitingüi é o espaço no qual o passado sombrio, o presente de transformações e o futuro de esperanças e curas convivem lado a lado, dividindo suas incertezas e promessas e contando o tempo através de dolorosas memórias.